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NOTA DE REPÚDIO À INTERVENÇÃO NA GESTÃO DAS ESCOLAS PÚBLICAS MUNICIPAIS DE SÃO PAULO

        Neste dia 22 de maio de 2025, a Rede Municipal de Educação de São Paulo foi surpreendida por mais um episódio de flagrante amadorismo e autoritarismo, protagonizado pelo prefeito Ricardo Nunes e seu secretário de Educação, Fernando Padula. Em uma decisão unilateral, desprovida de qualquer diálogo com as comunidades escolares, a gestão municipal determinou a retirada sumária dos diretores e diretoras de 31 escolas públicas municipais da capital. A justificativa oficial — baseada nos baixos desempenhos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dessas escolas — escancara uma lógica punitivista, que desconsidera as múltiplas dimensões da realidade escolar.

        Segundo a gestão, os e as ocupantes do cargo de direção afastados serão encaminhados compulsoriamente para um curso de “reciclagem” (sic). O que, em si, evidencia o desprezo da administração municipal pela trajetória profissional e pelo compromisso cotidiano desses educadores e educadoras com a educação e as comunidades escolares em tela. Tal medida não apenas desqualifica os princípios básicos da gestão democrática, previstos em todas as normativas que regulam a educação pública brasileira, como também expõe o profundo despreparo da atual administração diante dos reais desafios da educação pública. E revela, ainda, uma completa incapacidade da gestão em compreender e utilizar criticamente os dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), convertendo-os em instrumento de coerção e culpabilização — característica típica de uma administração populista.

        Ao disseminar a equivocada noção de que os “baixos índices” de desempenho decorrem da suposta falta de formação dos e das profissionais da educação, a gestão municipal não apenas ilude a população, mas também apaga deliberadamente os múltiplos fatores sociais, estruturais e territoriais que condicionam os processos educativos, além de desresponsabilizar as políticas governamentais adotadas das consequências para a consecução da qualidade na educação, o que compreende as condições necessárias para o bom funcionamento das escolas. Trata-se de uma estratégia que desinforma, sobretudo porque a administração não apresentou qualquer estudo que comprove uma relação entre os resultados no Ideb dessas escolas e a atuação de seus diretores e diretoras. Mais do que isso, constrói-se uma retórica mistificadora sobre o que se entende por “evidência” educacional, na qual o êxito escolar estaria atrelado a uma “qualificação” abstrata — desprovida de conteúdo claro, de sujeitos concretos e de vínculo com a complexa realidade vivida nas unidades da rede.

        Vale destacar que, no campo da pesquisa educacional, há um longo debate sobre o que se entende por “evidências” acerca da qualidade das escolas e de que forma estas impactam o cotidiano do trabalho pedagógico (Davies, 1999; Biesta, 2010). De fato, os resultados de avaliações em larga escala e fluxo escolar, fatores que compõem o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), têm lugar na discussão sobre políticas educacionais. No entanto, não podem — sob nenhuma perspectiva — ser tomados como únicos critérios de avaliação das escolas, tampouco como eixo central de julgamento sobre a qualidade da educação ofertada, especialmente em contextos vulneráveis. Quando esses dados passam a orientar exclusivamente as decisões de gestão e as políticas escolares, instala-se um claro déficit democrático: a chamada “evidência” passa a substituir: o juízo profissional dos atores escolares, o diálogo com a comunidade escolar, o conhecimento acumulado pelas pesquisas na área e o debate público sobre os fins, os meios e os sentidos da educação pública (Biesta, 2007).

        Além disso, políticas educacionais baseadas unicamente nos resultados dessas provas tendem a reduzir a complexidade do direito à educação a uma noção restrita de “aprendizagem” mensurável. Estudos produzidos tanto no Brasil (Oliveira & Araújo, 2005; Freitas, 2011; 2012; Bonamino & Souza, 2012; Ximenes, 2012; Bastos, 2017; Rodrigues et al., 2022) quanto em contextos internacionais (Booher-Jennings, 2005; Ball, 2007; Ravitch, 2010; Andreasen et al., 2015; Smith & Holloway, 2020; Jerrim, 2021; Koret, 2017) indicam que esse tipo de política focada apenas nos resultados, frequentemente, provoca o estreitamento curricular, afeta negativamente o bem-estar de estudantes e professores.as, compromete a profissionalização docente e reduz significativamente as possibilidades de formação crítica, criativa e cidadã nas escolas. As pesquisas apontam, de forma consistente, para:

a) o empobrecimento dos currículos escolares;

b) a performatização do ensino, com foco em resultados imediatos e desvinculados de sentido pedagógico;

c) a limitação das experiências escolares que promovam o pensamento complexo, o raciocínio abstrato e a autonomia intelectual;

d) a desmoralização dos.as gestores.as educacionais e dos.as profissionais da educação;

e) a exacerbação da competição entre as escolas, entre docentes e entre os alunos, que dificultam processos participativos e democráticos;

f) a destruição do sistema público de ensino; ao “entregar” a definição dos fins e dos objetivos educacionais para o setor privado;

        E, ainda, a adoção de programas que enfatizam medidas de regularização de fluxo escolar, desconsiderando as trajetórias e contextos escolares, bem como os processos educacionais de cada estudante. Este conjunto simplesmente escamoteia a realidade e forja situações que beiram a discriminação e aumento da segregação socioeconômica intra e entre escolas. Isso se manifesta, por exemplo, quando crianças e adolescentes são retirados de suas turmas-classes para submetê-las a processos de “recuperação” paralela, com base em critérios exclusivos de rendimento. Não há dados robustos de que tais estratégias melhorem a qualidade da educação, tanto assim que os índices permanecem inabaláveis por décadas na mesma rede.

       Se a educação pública em São Paulo é controlada por organizações privadas contratadas sob cláusulas de sigilo, isso impede, consequentemente, o acompanhamento público e republicano dos resultados de suas ações. Trata-se, assim, de um grave obstáculo à transparência e à construção de políticas educacionais fundamentadas no interesse público (Silveira & Adrião, 2023).

        No caso da Rede Municipal de São Paulo, esta movimentação da prefeitura adquire contornos ainda mais preocupantes. Pois trata-se de um dos poucos sistemas públicos de ensino cuja ingerência privada era limitada e que a expertise e o compromisso técnico e político de seus quadros profissionais eram reconhecidos e entendidos como condição fundamental e privilegiada para a construção de uma escola pública de qualidade. Uma escola concebida não apenas enquanto um espaço formal de ensino, mas como um território de concretização da educação como um direito humano, e como tal, integrado pelo direito ao aprendizado, à cultura, ao respeito, à aceitação e ao exercício de práticas cidadãs e democráticas.

        Diante deste cenário, impõem-se perguntas urgentes: Qual foi o critério técnico adotado para a contratação de instituição privada com licença de licitação por mais de 4 milhões de reais, encarregada da elaboração e implementação de política de formação de gestores escolares? Como ficam os.as gestores.as das escolas que atuam em territórios marcados por extrema vulnerabilidade, que atendem populações imigrantes de múltiplas nacionalidades, crianças com diferentes deficiências e múltiplas neurodivergências, sem os suportes técnico, pedagógico e institucional necessários para enfrentar esses desafios concretos? Quem substituirá estes.as diretores.as? Ao comutar o investimento na valorização e formação continuada dos profissionais da rede por contratos opacos e soluções generalistas e/ou imediatistas, a atual gestão compromete não apenas o presente, mas o futuro da educação pública paulistana.

        Assim, os Grupos de Pesquisa signatários desta nota de repúdio - vinculados às universidades paulistas e comprometidos com a formação direta e indireta de gestores da Rede Municipal de Ensino de São Paulo - vêm a público manifestar seu repúdio à medida adotada pela gestão municipal, nos seguintes termos:

1. Repudiamos a indicação de interventores e interventoras para a assunção da direção de escolas públicas paulistanas, que desrespeitam o princípio de impessoalidade;

2. Questionamos o desrespeito ao processo público e transparente da assunção do cargo de diretor, por meio de concurso público e ou de concurso de remoção, condições que, na cidade de São Paulo, garantem o acesso técnico e transparente aos cargos de gestão escolar;

3. Afirmamos, que a substituição de diretores.as concursado.as por indicações sem critérios específicos configura retrocesso institucional e afronta os marcos legais da administração pública;

4. Nos posicionamos contra o desrespeito à Carreira do Magistério Municipal constituída com base em princípios de valorização profissional, formação continuada e compromisso com a educação pública. A desqualificação sumária de diretores.as, via ausência de critérios técnicos consistentes e com tom retórico populista atinge não somente os profissionais diretamente envolvidos, mas compromete a confiança na estabilidade e integridade da carreira docente;

5. Denunciamos o descaso à comunidade escolar de um processo que a impacta diretamente. Sem nenhuma consulta ou diálogo, as comunidades não foram ouvidas e nenhum órgão de gestão democrática (conselhos escolares, grêmios estudantis, associações de pais ou coletivos de professores) das escolas foram consultados. Trata-se de uma violação do princípio constitucional da gestão democrática, previsto na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), no Plano Nacional de Educação (PNE) e no próprio Regimento da Rede Municipal.

       Em vista do exposto, os Grupos de Pesquisa abaixo manifestam seu total apoio aos Diretores e Diretoras afastados e declaram que os princípios da gestão democrática na educação devem pautar as políticas públicas educacionais.

Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional – GREPPE/Unicamp

Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional – GREPPE/UNESP-RC

Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional – GREPPE/USP-RP

 

ASSINAM esta NOTA:

1. Laboratório de Observação e Estudos Descritivos - LOED/UNESP

2. Laboratório de Políticas Públicas e Planejamento Educacional – Lapplane/Unicamp

3. Laboratório de Gestão Educacional – Lage/Unicamp

4. Grupo de Estudos e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional – GEPALE/Unicamp

5. Laboratório de Observação e Estudos Descritivos - LOED/UFU

6. Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar – Gepae/USP

7. LABORATÓRIO DE ANÁLISE DE POLÍTICAS E GESTÃO DA EDUCAÇÃO - LAPGE/UFU

8. Laboratório de Observação e Estudos Descritivos - LOED/Unicamp

9. Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial

10. Grupo de Estudos em Gestão e financiamento da educação - GEG/USP

11. Grupo de Estudos e Pesquisas em Humanidades: Arte, Filosofia, História e Educação - GEPH/UFRRJ

18. Grupo de Avaliação, Políticas e Sistemas Educacionais - GRAPSE/PUCCAMP

19. Grupo de Pesquisa Educação e Tecnologias - GEdTecs/PUCCAMP

20. CENTRO DE ESTUDOS E PESQUISA EM ADMINISTRAÇÃO DA EDUCAÇÃO – CEPAE - UNESP/MARÍLIA

21. Grupo de Estudo em Política, Gestão e Avaliação da Educação Básica e Superior GPGAEBS/UnB

22. Grupo rastros – PB/Universidade Estadual da Paraíba

23. Grupo Polis - Educação e Políticas - UFU/UFRN

24. Grupo de Pesquisa em Política e Gestão da Educação/UFCG

25. Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Ensino e Aprendizagem de Matemática na Infância – GEPEAMI/USP.

26. Grupo de Estudo e Pesquisa sobre Atividade Pedagógica- GEPAPe/ USP

27. Grupo de Estudos e Pesquisas em Formação de Professores e Currículo - GEPEFOR/USP

28. Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Infância, Juventude e Educação - LEPINJE

29. Retórica e Argumentação na Pedagogia - USP

30. Grupo de Estudos da Localidade - ELO/USP

31. Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional – GREPPE/UFPR

32. Laboratório de Investigações em Ensino de Ciências Naturais/IQSC - USP

33. Grupo EducAção - IQSC/USP

34. Philosophia, Educação e Sustentabilidade - PhiloEduS/PUCCAMP

35. Grupo de Pesquisa Linguagens, Desenvolvimento Humano e Atividade Pedagógica - PPG-Educação/PUCCAMP

36. Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Políticas de Educação para a Infância – GEPPEI/ UFRGS

37. Observatório do Ensino Médio

38. Rede Nacional EM Pesquisa

39. Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação Superior - Gepes/UFPA

40. Grupo de Pesquisa em Gestão, Trabalho e Políticas em Educação – GesTraPol/ UEMG/Ituiutaba.

41. Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas e Práxis de Educação/UFCG

Referências:

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